sábado, 31 de março de 2012

Epitáfio em vida para os meus pais

Em maio de 2008 um tio meu faleceu.
Como em outros sepultamentos – adoro esta palavra! - da minha enorme família, nesse não havia desespero ou lamentações, mas alguns sorrisos, abraços fortes, conversas e orações. Apesar do morto não ser muito chegado às questões da fé, entendo que as orações serviram, principalmente, para o conforto dos que ficaram.
Mas o que realmente me marcou foram as bonitas palavras proferidas pelas filhas do finado, no caso, minhas primas.
Decidi naquele exato momento que diria ao meu complexo pai – vivo - o quanto o admiro e o quanto ele é importante para mim. Acho que ele sempre soube tudo isso, mas queria que ficasse registrado de algum modo e, ao final daquele mesmo dia, escrevi algumas poucas linhas que foram salvas num arquivo de texto. Entretanto, não passou daí. Alguns meses depois, o computador queimou sem eu ter feito backup e o tal arquivo foi sepultado.
Hoje estou em casa pelo terceiro dia consecutivo devido à greve dos rodoviários. Depois de horas a fio de frente ao computador, fiquei com raiva de mim mesma por passar tanto tempo à toa no facebook.
Deu-me uma vontade enorme de escrever, contudo, como já disse na publicação de outro dia, tenho andado sem inspiração.  Trago muitas ideias de temas na cabeça, mas nada realmente que eu estivesse com vontade de desenvolver agora. Desta forma, desliguei o computador e fui para a cozinha testar novas receitas, pois para isso tem andado bastante inspirada.
Sem paciência para internet, sem sinal de televisão há uma semana, sem inspiração, e sem saco de realizar tarefas domésticas ou profissionais, para não me sentir uma inútil completa, dediquei-me a leitura de As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Todavia os dedos continuaram em comichão para digitar algo e a cabeça ficou acelerada com mil ideias soltas.
E eis que a inspiração chega pelas palavras de Arthur Dapieve com sua crônica “O estrangeiro” de 1995, na qual o escritor relata a devastadora sensação de solidão diante do mundo ao viver a morte de sua mãe. Eis um trecho:
É como se, antes do acerto de contas com o Criador, tivéssemos de acertar contas com a nossa Criadora. A morte da mãe deve ser, com a provável exceção da morte de um filho, a coisa mais parecida com a própria morte que um ser humano pode experimentar em vida. É uma ponte que se queima.
E assim, cá estou eu escrevendo um epitáfio em vida para os meus pais.



Pode parecer funesto, mas adianto-me a dizer que sou prática e realista o suficiente para ter a consciência de que meus pais não vão durar muito mais.
É engraçado e estranho perceber o que o tempo e a maturidade nos proporcionam. Quando era criança meu pai vivia dizendo que tinha pavor da morte. Hoje, quando tocamos no assunto, ele assume uma postura de resignação e até uma relativa tranquilidade.
Da minha parte, antes, a simples ideia de viver num mundo onde meus pais não existissem, me causava verdadeiro pânico. Hoje apenas sou grata ao universo por ter me dado a oportunidade de ter a proteção, o carinho e amor de meus pais até me tornar a mulher adulta que sou.
Tenho absoluta certeza que sentirei falta do colinho da minha mãe, ao qual recorro toda vez que me sinto frágil e desemparada.  Tenho certeza também que sentirei falta da sensação de segurança que meu pai me dá. Costumo dizer que meus pais, cada um a sua maneira, me passam a imagem de um porto seguro, um cais, terra firme.
Sei que até posso ir antes deles. Mas peço ao Poder Superior que os livre da dor de perder um filho ou uma filha.  
Mas deixemos de reflexões e vamos ao epitáfio de meus mais como casal:

Meu pai é a terra, minha mãe, o mar.
Ele é a cidade, ela, o campo.  
Ele é o inverno, ela, a primavera.
Ele é a justiça, ela, a absolvição.
Ele é a realidade, ela, o sonho.
Ele é o fato, ela, a esperança.
Ele é a segurança, ela, a aventura.
Ele concentra, ela partilha.
Ele é a oposição, ela, a situação.
Ele é a sanha, ela, a solidariedade.
Ele lamenta, ela, agradece.
Ela é a fé, ele, o ceticismo.
Ela é o futuro, ele, o presente.
Ela planeja, ele concretiza.
Heráclito de Éfeso, o filósofo do fogo, em sua teoria dos contrários, afirma que em todo ser está contido o não-ser, o seu oposto. Assim, tudo no universo está em permanente conflito com o seu contrário. Os seres vivos morreriam porque já trariam em si a morte, oculta. Conhecer qualquer coisa só é possível porque existe o seu contrário. Sabemos o que é alegria porque experimentamos a tristeza e vice-versa. O mesmo, segundo Heráclito, aconteceria com as qualidades de tudo o que existe, sempre aos pares. A guerra e a paz, o quente e o frio, o amor e o ódio.
Meus pais se perguntam como conseguiram ficar casados por tampo tempo.
Creio que o filósofo do fogo respondeu a esta questão há quase três mil anos atrás. Meus pais formam a dupla de pares opostas de Heráclito e só mesmo tendo todos aqueles clichês inerentes a um casal, como o amor, paciência e resignação eles conseguiram formar uma família tão linda e unida como a minha.
Contudo, esta é uma visão muito pessoal da minha família. Se meus irmãos não concordam, cabe a cada um reescrever esta história. Ainda há tempo.


7 comentários:

  1. Como Yin e Yang, metades diferentes, porém com uma partícula desta diferença em cada um. Nada e ninguém é plenamente "puro" e igual; não teria graça se não houvessem diferenças. A diversidade nos faz tão diferentes, mas é onde encontramos novas soluções.
    Parabéns Bia por mais esta reflexão;

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  2. Adorei, minha querida irmã!

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  3. Bia, concordo plenamente. Somente vc para descrever tão fielmente o relacionamento de nossos queridos pais,eu a + velha vc a caçula com + 3 entre nós duas. Eles conseguiram difundir o amor e a união e isso é muito mais e maior do que alguém podem imaginar.
    Te amo minha irmã.

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  4. PERFEITO! AMEI! ME EMOCIONEI DE VERDADE! PARABÉNS!!!

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  5. "Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais"...

    Pra carregar ainda mais as saudades de hj!

    Beijos, Bia.

    Viviane

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  6. Bia, muito interessante sua sensibilidade em abordar esse tema. Muito bom e parabéns.
    Poderia até copiar e reescrever, mudando os nomes, a história de meus país; são tão iguais!

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