segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Kula urbano

De hoje não passa! Vou fazer um bolo de cenoura. Além de uma vontade enorme de comê-lo, quero também devolver o prato de sobremesa que minha vizinha me entregou com três panquecas.
Tudo começou quando estava fazendo uma sopa cremosa e o meu liquidificador estava quebrado. Só lembrei-me disso quando a sopa estava praticamente pronta, faltando apenas batê-la no liquidificador. Toquei a campainha da vizinha e expliquei a situação. Quando fui devolver o aparelho, ofereci um pouco da sopa num pote. Dias depois ela devolveu-me o mesmo pote e ainda ofereceu-me panquecas num prato de sobremesa.
Agora não quero devolver o prato vazio. Resumindo, estou me sentindo num verdadeiro Kula urbano.
De antropologia gosto muito pouco, mas do Kula eu nunca esqueci. Li o texto nos primeiros semestres da faculdade de Ciências Sociais. O sistema foi descrito primeiramente por Malinowski e depois, em outro contexto, analisado por Marcel Mauss em seu livro Ensaio sobre a dádiva.
As folhas de “xerox” que continham o material foram comidas pelas traças, e, assim, tive que pesquisar no google sobre o tema e eis aqui uma breve síntese[1]:

O kula é um sistema intertribal de trocas praticado na Melanésia e existente ainda hoje, envolvendo transações locais e em todo o arquipélago. Colares e braceletes de conchas, oferecidos com certo intervalo de tempo, percorrem depois um mesmo circuito fechado, mas em sentido inverso. Após certo período, os objetos recebidos são repostos em circulação; seu valor reside na continuidade da transmissão. A posse provisória fornece prestígio e renome. Potlatch, por sua vez, significa dádiva ou dar e é parte do contexto cerimonial das populações ameríndias da costa noroeste da América do Norte.


[...] a regra fundamental da troca possui uma tripla obrigação que consiste em dar, receber e retribuir. Essa norma permite, em todas as sociedades, o estabelecimento e a manutenção de relações sociais. Assim, quando entramos em um sistema de trocas, somos inseridos em um ciclo do qual é difícil sair sem prejuízo social: renunciar à reciprocidade pode levar à ruptura do vínculo.
          
No entanto, bolo de cenoura, panquecas, antropologia, kula e braceletes são apenas desculpas para escrever sobre a reciprocidade nos relacionamentos humanos. Eu tenho por mim que a troca é esperada em TODOS os relacionamentos.
      E não adianta vir com aquela história de que no amor materno isso não existe, que ele é incondicional, que nada espera em troca e blá, blá, blá. Eu não acredito nisso. Não acredito mesmo!
A mãe espera, ao menos, um beijo de seus filhos pequenos, isto para não falar da obediência. Quando eles crescem, a mãe espera um telefonema, uma atenção, um agrado (material ou não). Ela espera o reconhecimento pela dedicação e por todos os sacrifícios feitos. Aninha, consegui visualizar o seu roto se contorcendo ao ler isso.
Mas é isso mesmo. Quando alguém dá – seja lá o que for -, espera receber. Eu, por exemplo, espero que ao ler esta crônica, você post um comentário.
Uma vez eu li algo dizendo que seríamos mais felizes se déssemos sem nada esperar em troca. Contudo, não somos o Dalai Lama e, infelizmente, vivemos numa sociedade onde tudo vira mercadoria, inclusive os sentimentos.
Eis uma situação para ilustrar o que estou falando:
Tenho dois amigos que fazem parte de um mesmo grupo. Após um tempo de convivência eles começaram a sair. Aquele tipo de saída que a gente espera que dê em um relacionamento, pois os dois juntos formam um casal bem bonito.
Entretanto, pouco tempo depois, algo desandou entre eles e como amiga de ambos, ouvi as duas versões.
Ele me disse que estava decepcionado, pois vivia fazendo pequenas surpresas para a minha amiga. Passava no trabalho dela para levar chocolates, ligava, mandava flores, torpedinhos carinhos, entre outras coisas. Mas ela não correspondia a estes agrados. Ele dava com uma mão, mas ficava com a outra aberta esperando receber.
Ela por sua vez, confidenciou-me que achava tudo aquilo muito lindo, mas que não queria se sentir obrigada a fazer o mesmo, pois, afinal, precisavam resolver certas pendências antes dela se entregar totalmente. Ou seja, ela também esperava alguma coisa dele, vale dizer, que ele se desenrolasse antes dela entrar de cabeça no relacionamento. Ao meu ver, isso é uma atitude muito pertinente!
Então é isso? Será que somos um bando de interesseiros?
Duvido. Acredito que estamos mais para investidores inseguros do que para acionistas profissionais.


Apresento-lhes minha teoria:
O mercado dos relacionamentos é muito vasto. Há diversas possibilidades na vida de uma pessoa. Diante deste fato, talvez queiramos receber garantias de que nosso investimento terá retorno garantido, afinal, não precisamos ser economistas, tampouco ter lido Adam Smith, para percebermos a existência da lei da oferta e procura.
No entanto, é possível hipotecar algo tão frágil como o sentimento?
Para quem tem coragem de abrir seu capital a um novo amor, é preciso ter consciência de que a balança comercial dos relacionamentos amorosos é imprevisível. É necessário deixar a racionalidade em segundo plano e pensar menos na relação custo-benefício, pois, vez em quando teremos que pagar ágio.
Da minha parte eu prefiro perder algumas ações e suar de nervosismo diante das flutuações de câmbio de um novo amor do que passar a vida me protegendo do sofrimento.
No mercado do amor, prefiro ser uma investidora corajosa.
     Mas hoje, feriado, minhas ações estão fechadas para balanço e vou me dedicar às atividades bem menos complexas.

        
          Talvez amanhã, com as bênçãos de São Jorge, eu recomece a investir no  difícil mercado do amor.

Obs: 
Dúvidas sobre os conceitos de economia presentes na metáfora, consulte: 
http://www.gazetadeitauna.com.br/economes.htm

Niterói, 23 de abril de 2012.



[1] O valor (moral) da troca por Sophie Chevalier e Anne Monjaret, disponível em: http://www2.u  

11 comentários:

  1. Gizelli Bourlier Carestiato23 de abril de 2012 às 13:16

    Adorei!
    E me bateu até aquela vontade de um bolinho com café... rs
    Salve Jorge!

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  2. Gostei muito Bia! Bjs

    Patrícia Manuela

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  3. Adorei! Pena que no blog não podemos "curtir" ou "reblogar"
    Beijoos

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  4. O Kula é sempre lido num dos primeiros períodos né?...
    Um saco, mas interessante.
    Ficou bem legal o paralelo, ótimo texto!

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  5. Garota, sua 'crônica' ficou incrível.
    Nesse jogo de reciprocidades estou investindo nas ações afetivas e efetivas...
    com a mão aberta, não agressiva, sim fluida...
    pois talvez as categorias mercadológicas não alcancem os fundos do coração...
    tô gostando desse novo momento afeto aberto...
    Ah, a propósito do bolo e das panquecas, esse kula tem origens nas zonas rurais... já dizia minha Avó que nunca devemos devolver um prato (ou seja lá o que for) emprestado, vazio ;)
    seguimos nos kulas tantos em que estamos implicados, e no final das contas,
    isso pode ser bom, muito bom :)
    beijos e parabéns pelo escrito (já disse isso? rsrs)
    Um beijo abraço.

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  6. Oi, Bia!
    Cheguei no seu blog através da Beatriz
    Olha, adorei seu texto!
    Concordo com você e me lembrei daquela frase: "Não existe almoço grátis".
    Tb não acho que seja interesse pelo interesse, num sentido negativo. Simplesmente ninguém quer sair no prejuízo e todos tem o direito que não querer isso. Acho que quem espera que o outro se sacrifique a esse ponto tem algo de perverso - mas será que no fim das contas, todos nós, bem lá no fundo, pelo menos uma vezinha, já não fomos perversos? rs
    Bjos e já estou seguindo o blog :)

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Super Interessante a sua crônica, pois realmente o sentimento de amar é um Kula itinerante.

    É necessário fazer com que ele ande sempre para não ficar parado e assim instituir toda uma tradição.

    Já a respeito de "abrir seu capital a um novo amor" digo não abra. Ponha em comodato. Quando não estiver tendo "lucro" pegue de volta. Assim vc não estará tendo lucro e caminhando na lógica mercantilista.

    Mas, se o espírito budista prevalecer, doe, doe com vontade e, ganhe todos os sentimentos neste ato de doar. Pois, assim vc tbm estará ganhando ao dar...

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  9. Estou adorando, querida!! Vou devorar seu blog todo nesta madrugada chuvosa! Beijos, Viviane Mitchell (facebook)

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