Eu gosto
das pequenas viagens de ônibus. Quando essas duram até seis horas, chego a
preferir ônibus a carro ou avião. Aprecio-as ainda mais quando estou sozinha.
Como raramente
eu consigo dormir e ultimamente tenho sentido enjoo quando tento ler em ônibus,
nada me sobra para fazer. E assim, neste ócio imposto, me entrego às reflexões e
devaneios.
Tendo como
cenário a paisagem que vejo através da janela, meu pensamento vai mais longe do
que aquela casinha lá no topo daquele morro. Rostos, casas, animais, praia,
pasto, placas, carros e tantas outras coisas que avisto apenas de relance, me
fazem pensar nas infinitas possibilidades da vida humana. Aproveito estes
momentos de devaneio para avaliar e criar novas perspectivas para a minha
própria vida. Dependendo do meu estado
de espírito, sorrio ou choro sozinha com as minhas reflexões.
No domingo
passado fiz uma dessas pequenas viagens. Um trajeto que conheço a minha vida
toda, mas que sempre me comove e encanta.
A despeito
da minha recém-tendência a enjoar, comecei a folhear um livro de coletânea de
poesias pornográficas. Estava me divertindo com a linguagem chula e me
surpreendendo com as abominações próprias deste tipo de escrita. De vez em
quando eu parava a leitura para olhar pela janela e me entregava às minhas
queridas e desejadas reflexões – como pode você imaginar, nada muito “puro”.
Eis que,
com pouco mais de meia hora de viagem, o ônibus para e entra mais uma
passageira. O motorista avisou que não havia mais lugares disponíveis. Ela, no
entanto, entrou assim mesmo e sentou no chão, no degrau ao lado dele - eu
estava sentada a dois ou três bancos atrás do motorista, ou seja, muito perto
de minha nova colega de viagem.
Foi aí que
começou o meu inferno...
A tal
mulher deu início uma conversa com o motorista que mais parecia uma pregação
interminável sobre céu, inferno, Jeová, Jesus, pecado, livre arbítrio, dentre
outras coisas do gênero. Com uma soberba inabalável, citava versículos do
evangelho e cada vez mais animada, sua voz ia aumentando de volume. Chegou a
pregar tão alto e com tanta propriedade que conjecturei, infeliz, a condenação
de minha pobre alma pecadora.
No
entanto, voltei à razão e vi que o projeto de pastora é que estava discursando
no lugar errado. Minha irritação foi crescendo, crescendo a ponto de eu, sem
sentir, pensei em voz alta e soltei “que mulher sem noção!”.
Para
discorrer sobre o tema, usarei a brilhante definição elaborada pela minha amiga
Ana Cristina:
“Sem noção”: condição que acomete pessoas de
todas as classes sociais. Algumas pessoas nascem sem noção, outras manifestam apenas
em determinadas ocasiões (em restaurantes, por exemplo, quando destratam
garçons). A principal característica dos "sem
noção" é não dispor em seu organismo - em especial no cérebro - um dispositivo
que leve à reflexão antes de falar e/ou agir. Ou seja, os "sem noção"
não reconhecem que são inconvenientes, desagradáveis, e que levam os seus
amigos, ou as pessoas à sua volta, a sentirem "vergonha alheia".
Pense
comigo. As pessoas estão “presas” num ônibus. Talvez elas esperem usar este
tempo para tirar uma soneca, relaxar, fazer palavras cruzadas, pensar em
qualquer coisa ou em coisa alguma, ler poesia pornográfica, conversar com seu
companheiro de viagem ou seja lá o que for e surge alguém para perturbar o silencio de
sua viagem? Não é um simples trajeto de ônibus. É uma viagem! Você tem um
destino mais ou menos longe da sua casa. Não dá para pedir para o motorista
parar o ônibus para você descer.
Cotidianamente
nos deparamos com os “sem noção”. Eu mesma já fui bastante inconveniente quando
insistia em me fazer de engraçada e acabava fazendo brincadeiras ou comentários
completamente dispensáveis. Mas ainda bem que tenho bons amigos que me
apontaram de maneira muito carinhosa este desvio de conduta e assim, com uma
boa dose de esforço diário, tenho tentado pensar e me colocar no lugar do outro
antes de falar e fazer certas coisas.
Apesar de
ser uma otimista incorrigível, percebo que temos vivido um período de individualismo
muito exacerbado e com isso as pessoas têm perdido a capacidade de autocrítica.
São tantos exemplos de pessoas ou situações “sem noção” que daria para escrever
um livro ao invés desta crônica, mas vamos a alguns poucos:
Sem noção
é aquela pessoa que não cede o lugar a um idoso, a um portador de deficiência
ou a uma mulher grávida no transporte público. É alguém que faz uma visita
levando o seu cachorro sem ao menos perguntar se o visitado - que, a propósito
mora num apartamento - se incomodaria. É aquele torcedor que comemora a vitória
do seu time gritando na rua às 23 horas de um domingo. É o dj de ônibus. É aquela pessoa que fala alto no museu, no teatro, no
cinema. Totalmente sem noção é quem ri e faz piada da desgraça alheia. É o cara
ou a mulher “que não trepa, mas não sai de cima”. Tem também a modalidade "casal sem noção" que resolve discutir a relação em público. Sem noção é quem pede dinheiro
emprestado a um amigo ou familiar sem ter pago a dívida anterior. Tem aquele
típico “sem noção” em seus carros com auto-falantes possantes que esquecem que a
praia e a rua são de todos e botam a tocar ritmos de gosto duvidoso – me
perdoem o elitismo – a uma altura tão absurda que você acha que o seu coração
vai pular pela boca. Sem noção é o estudante que diz “hoje tem prova de quê?”.
É fazer listinha de compras para alguém que está indo viajar de férias. É
aquele que quer ter uma conversa séria às 22 horas de uma sexta-feira. É quem
propõe reunião de trabalho no sábado de manhã. É quem vive reclamando da vida.
É quem monopoliza a conversa. É quem escreve demais.
E assim, tentando
deixar de ser uma no sense adianto-me
a fechar este texto recomendando o cultivo de uma qualidade importante para o
ser humano, mas que anda meio esquecida: a empatia,
ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro. Afinal de contas, como
já diz um certo José Datrino, mais conhecido como Profeta Gentileza, um sem
noção do bem:
Prá variar, mais uma gostosura de crônica prá ler.
ResponderExcluir"Sem noção é o estudante que diz “hoje tem prova de quê?” Eu acho que já vi esse filme muitas vezes! Ainda bem que não sou sem noção nesse sentido! kkkkk
ResponderExcluirVocê me encanta minha irmã. Estou com saudade de falar contigo.
ResponderExcluirFaço minha as palavras de Marta.