Em maio
de 2008 um tio meu faleceu.
Como em
outros sepultamentos – adoro esta palavra! - da minha enorme família, nesse não
havia desespero ou lamentações, mas alguns sorrisos, abraços fortes, conversas
e orações. Apesar do morto não ser muito chegado às questões da fé, entendo que
as orações serviram, principalmente, para o conforto dos que ficaram.
Mas o que
realmente me marcou foram as bonitas palavras proferidas pelas filhas do finado,
no caso, minhas primas.
Decidi naquele
exato momento que diria ao meu complexo pai – vivo - o quanto o admiro e o
quanto ele é importante para mim. Acho que ele sempre soube tudo isso, mas
queria que ficasse registrado de algum modo e, ao final daquele mesmo dia,
escrevi algumas poucas linhas que foram salvas num arquivo de texto. Entretanto,
não passou daí. Alguns meses depois, o computador queimou sem eu ter feito backup e o tal arquivo foi sepultado.
Hoje
estou em casa pelo terceiro dia consecutivo devido à greve dos rodoviários. Depois
de horas a fio de frente ao computador, fiquei com raiva de mim mesma por
passar tanto tempo à toa no facebook.
Deu-me uma
vontade enorme de escrever, contudo, como já disse na publicação de outro dia,
tenho andado sem inspiração. Trago
muitas ideias de temas na cabeça, mas nada realmente que eu estivesse com
vontade de desenvolver agora. Desta forma, desliguei o computador e fui para a
cozinha testar novas receitas, pois para isso tem andado bastante inspirada.
Sem
paciência para internet, sem sinal de televisão há uma semana, sem inspiração, e
sem saco de realizar tarefas domésticas ou profissionais, para não me sentir
uma inútil completa, dediquei-me a leitura de As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Todavia os dedos continuaram em
comichão para digitar algo e a cabeça ficou acelerada com mil ideias soltas.
E eis
que a inspiração chega pelas palavras de Arthur Dapieve com sua crônica “O estrangeiro” de 1995, na qual o
escritor relata a devastadora sensação de solidão diante do mundo ao viver a
morte de sua mãe. Eis um trecho:
É
como se, antes do acerto de contas com o Criador, tivéssemos de acertar contas
com a nossa Criadora. A morte da mãe deve ser, com a provável exceção da morte
de um filho, a coisa mais parecida com a própria morte que um ser humano pode
experimentar em vida. É uma ponte que se queima.
E assim,
cá estou eu escrevendo um epitáfio em vida para os meus pais.
Pode
parecer funesto, mas adianto-me a dizer que sou prática e realista o suficiente
para ter a consciência de que meus pais não vão durar muito mais.
É engraçado
e estranho perceber o que o tempo e a maturidade nos proporcionam. Quando era
criança meu pai vivia dizendo que tinha pavor da morte. Hoje, quando tocamos no
assunto, ele assume uma postura de resignação e até uma relativa tranquilidade.
Da
minha parte, antes, a simples ideia de viver num mundo onde meus pais não existissem,
me causava verdadeiro pânico. Hoje apenas sou grata ao universo por ter me dado
a oportunidade de ter a proteção, o carinho e amor de meus pais até me tornar a
mulher adulta que sou.
Tenho
absoluta certeza que sentirei falta do colinho da minha mãe, ao qual recorro
toda vez que me sinto frágil e desemparada. Tenho certeza também que sentirei falta da
sensação de segurança que meu pai me dá. Costumo dizer que meus pais, cada um a
sua maneira, me passam a imagem de um porto seguro, um cais, terra firme.
Sei que
até posso ir antes deles. Mas peço ao Poder Superior que os livre da dor de
perder um filho ou uma filha.
Mas
deixemos de reflexões e vamos ao epitáfio de meus mais como casal:
Meu pai
é a terra, minha mãe, o mar.
Ele é a
cidade, ela, o campo.
Ele é o
inverno, ela, a primavera.
Ele é a justiça, ela, a absolvição.
Ele é a
realidade, ela, o sonho.
Ele é o
fato, ela, a esperança.
Ele é a
segurança, ela, a aventura.
Ele concentra,
ela partilha.
Ele é a
oposição, ela, a situação.
Ele é a
sanha, ela, a solidariedade.
Ele lamenta, ela, agradece.
Ela é a fé, ele, o ceticismo.
Ela é o
futuro, ele, o presente.
Ela planeja,
ele concretiza.
Heráclito
de Éfeso, o filósofo do fogo, em sua teoria dos contrários, afirma que em todo
ser está contido o não-ser, o seu
oposto. Assim, tudo no universo está em permanente conflito com o seu
contrário. Os seres vivos morreriam porque já trariam em si a morte, oculta. Conhecer
qualquer coisa só é possível porque existe o seu contrário. Sabemos o que é
alegria porque experimentamos a tristeza e vice-versa. O mesmo, segundo
Heráclito, aconteceria com as qualidades de tudo o que existe, sempre aos
pares. A guerra e a paz, o quente e o frio, o amor e o ódio.
Meus
pais se perguntam como conseguiram ficar casados por tampo tempo.
Creio
que o filósofo do fogo respondeu a esta questão há quase três mil anos atrás. Meus
pais formam a dupla de pares opostas de Heráclito e só mesmo tendo todos
aqueles clichês inerentes a um casal, como o amor, paciência e resignação eles
conseguiram formar uma família tão linda e unida como a minha.
Contudo,
esta é uma visão muito pessoal da minha família. Se meus irmãos não concordam,
cabe a cada um reescrever esta história. Ainda há tempo.